sexta-feira, 28 de maio de 2010

Ofusca Letrado 2: Capítulo 1 - A construção



Os olhos travados e fixos na porta do quarto fechado. Os ouvidos minuciosos, a todo vapor, a captar os sons distorcidos que faziam seu coração pulsar descompassado. Ana não entendeu o que acontecia, mas sentia. Quanto tempo duraria? Os ouvidos relaxados destravaram os olhos da porta e assim ela se abriu. Silêncio. Agora era a vez dos olhos.
Andou e parou diante dos avós cabisbaixos sentados cada um em um canto da cozinha – o avô ao lado do fogão a lenha, a avó do lado oposto. Indiferente à cena, o fogo do fogão não parecia se importar; cumpriu sua sina carbonífera exalando o odor quente e acre de lenha consumida. Como teve anelo em ser fogo. Seu coração incandescente foi arremessado ao chão e se despedaçou como os cacos de vidro que lá estavam. O sangue juntou-se aos originais. Diante daquela tristeza muda calou seu choro, não cabia mais dor ali. E foi assim aprendeu a ser forte, feito o fogo.
Ana edificou-se ainda em outras forças herdadas. Sabia que não podia enrijecer, de tal modo, a elasticidade de seu coração, vital à vida. E desejou não sê-la, não da forma que era, consciente. Quis loucamente ser bicho, ser planta, ser louca, ser cheiro – desafiou-se a isto, então.
O som alto do rádio do avô, uma mescla de ruídos indecifráveis na função do cantarolar de um galo era irritante ao ouvido, mas um afago ao coração – ele viveria mais um dia, pensava Ana, e ela também. Na cama permanecia deitada olhando os primeiros raios de sol que invadiam o quarto pelas frestas do telhado e com eles inventava desenhos ligando os pontos de luz. Esperava notícias da avó e não demorava muito para senti-la. Ela chegava lenta, invisível aos olhos, carregada pelo ar. Ana inspirava-a, enchia seus pulmões da sua presença. O cheiro macio e quente do café misturado ao frescor das manhãs no campo marcava o início de um novo dia e a certeza confortante da avó.
O cheiro é uma lembrança quimicamente materializada; guardada fora dos campos neurais responsáveis por tal função torna-se infinda, dispersa pelo mundo. Ana sabia que o que seu olfato percebia era eterno, mas somente ela poderia decifrá-lo daquela maneira. Sua percepção, portanto, era finita, morreria com ela. Guardou consigo esse segredo, mas para ser sentida de infinitas formas diferentes, quis eternizar-se. E foi assim que Ana foi cheiro. Seu cheiro particular de camomila e sol. Da camomila, as flores, os chás e o cabelo que exalavam seu perfume. Do sol, o calor que o intensificava. De ambos, a cor que conferia um toque final de alegria. Ana agora estava imortalizada - como sua avó. Podia voar, podia ser sentida e interpretada sem julgamentos, ser inspirada sem pecado. Seria lembrança porque de fato algum dia existiu, diriam. E confortava-se profundamente ao ter a certeza disso.
Foi, porém, apenas em parte cheiro. A lembrança eternizada que almejava só existiria com ausência. Ela, contudo, era viva, quente, presente. E sua presença, enquanto viva, deixava marcas profundas. Pelas forças acumuladas pareceu justo o mundo ser-lhe mais pesado, a gravidade agir-lhe mais intensamente.
- Queria ter nascido pássaro. Disse à avó.
- O que foi que disse menina?
- Preferia ser pássaro a gente.
- Que estória é essa agora?
- Olhe aquele pássaro ali fora. Ele sabe viver. Vive por instinto e, irracional, leva uma vida descomplicada, leve. Talvez seja por isso que voe. Não carrega a consciência supérflua do mundo sob as asas. Não espera do mundo nada além do que ele pode lhe oferecer.
- Voa, mas também tem frio, fome, sede, medo; como você, Ana.
- Tenho tudo isso, mas mesmo assim não saio do chão. Ele apenas sente essas coisas, não pensa sobre elas, como nós. Quanto mais pensamos e menos sentimos, mais longe do céu ficamos. A carga racional do mundo sobre nossas asas é tamanha que as impediu de crescer. Sempre quis voar. Não gosto de ser o bicho que sou. Você gosta?
A avó olhou-a com olhos confusos e, assim como eles, sua boca manifestou-se.
- Talvez tenhas razão. Sejamos pássaros, então.
Ana abriu um largo sorriso e os braços, fechou os olhos e irracionalmente sentiu o mundo. Foi o melhor vôo de sua vida.
Não apenas como pássaro voou. No jardim da casa sentava muitas vezes e ali ficava junto às flores, admirando-lhes a beleza e a simplicidade. Eram como ela, precisavam do sol para serem. Chuva, vento, calmaria. Elas ali ficavam – será? – dançando no compasso disritmado desse mundo. Ana e as flores mesmo em seus vôos fixos, enraizados, iam longe, eram livres.
Em frente ao jardim a avó estava sentada, os olhos submersos em lágrimas. Chegou, acomodou-se ao seu lado, muda. Um silêncio que deixou as vibrações do seu coração transformarem-se em som fúnebre aos ouvidos. Martírio silenciado – preferiu sinceramente, naquele instante, os ruídos mal sintonizados do rádio do avô. A consciência da culpa impediu o vôo, ainda não tinha controle sobre sua força e magoava. Conscientemente sabia que era humana e errava como tal; isso a atormentava. Precisou ser fogo novamente. A conversa seguiu calada durante um período atemporal para seus sentidos e quanta coisa foi dita, quantas compreendidas.
- Perdão vó.
- Está perdoada.
Nunca mais quis magoar de novo. A absolvição dada pela avó proporcionou-lhe um alívio tão intenso que Ana sublimou instantaneamente e voou um vôo novo, bem mais leve que outrora, sublime como nunca.
Voou muitas vezes mais, sempre que seus pés ficavam demasiadamente fincados ao chão. Cultuou um grau de inconsciência que beirava a loucura. Exteriorizou o que não compreendia para livrar-lhe a cabeça e o coração.


Aqui linha reta, vertical, horizontal, quem sabe
Aqui voltas, idas, voltas, vindas, espiral, espiral, poeira, turvo, turbilhão
Aqui olhos que vêem vertical, horizontal, pois turvos só linha reta
E olhe lá
Reto, sim olho
Sinuoso só aqui; lá só vertical, horizontal
Um ponto assimétrico das retas, voltas, espirais - eu
Eu vejo turvo, turbilhão, turbilhão
Por isso reto, horizontal, vertical
Aqui uma reta para o turbilhão
Aqui uma curva para a reta
Assim, olhos limpos.


Depois lia e jogava fora, para certificar-se de que não voltaria ao local de origem. E assim controlava sua sanidade pêndula no limiar do abismo da loucura.
Novos cheiros. Quantos anônimos imortais Ana ainda inspiraria ao longo da vida?
- Olá, muito prazer em senti-lo. Meu nome é Ana, pode me sentir, sou camomila e sol. Sei voar. Posso ser louca também.
Depois do vôo, a loucura era o que mais a estimulava. Era seu contato mais íntimo, mais essencial, mais particular. Na conturbada incoerência dos incompreendidos, encontrava as respostas que buscava, conhecia-se afinal. E quão bela achava-se.
Ana agora é forte, loucamente coerente e leve.
- Aspirantes a expirar minha inspiração, conspirem asfixia! Gritou calada aos ventos com a certeza de que era ouvida. E foi plenitude.
Hoje amava viver, pois aprendeu como se faz. Era todas as coisas que queria ser e sendo assim, era ela mesma.
Os pontos de luz do telhado contavam-lhe histórias, às vezes, dela própria. O sol que invadia o quarto acordou seu aroma, ligou o ruído do rádio do avô, trouxe a avó para seus pulmões, clareou seu devaneio mais obscuro. E assim foi com tudo. E é assim que o dia é feito.
Sentou-se na beira da cama. Para onde viajaria hoje? Ouviu.
- O café está pronto!
O rádio cessou sua ladainha matinal. Agora se ouvia somente o som de passos descompassados indo em direção à voz. Novamente os três juntos, coexistindo uma vida em comum. Ana criou seus altares particulares e em algum deles estavam os avós.

- Bom dia.
- A vossa benção.
- Deus te abençoe.
E assim se fez Ana.



segunda-feira, 17 de maio de 2010

Ofusca Letrado 1: Assim (d)Escrevo

Para os que, como eu, exorcizam-se de vez em quando...


Saiu de mim a galope. Estouro de boiada, em disparada. Só restou poeira por um instante e tudo se perdeu ali. Sei mesmo é do pó. Dos bois... quem sabe? De certo, perderam-se naquela baita imensidão. Encontraram-se na liberdade. Poeira baixa, dia alto. E o mundo se revelou para além do que se via antes.

domingo, 16 de maio de 2010

Ofusca com Som 1: WADO - Terceiro Mundo Festivo (2008)

Ouço:




Som de ofuscar os ouvidos. Levada boa, ritmo envolvente.
Uma mistura de funk carioca, reggaeton e afoxés baianos. O cd pode ser baixado do site www.uol.com.br/wado